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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

AS RUAS SÃO CICATRIZES (crônica de José Wilson Malheiros, um santareno ilustre)

Muitas ruas possuem seu encanto particular, seduções, lembranças, mistérios...
Existem as que passam por nós com tanta intensidade, imprimem sua marca na alma, cicatriz indelével a nos acompanhar por toda a existência. A rua de casa, em Santarém, para mim, sempre foi uma dessas ruas. Você, na sua cidade, com certeza tem uma rua inesquecível.

Quando menino, a rua me parecia imensa. Um areal de não acabar mais. Brincávamos de pira-se-esconde, de peteca, de roda com as meninas, jogávamos futebol, empinávamos papagaio, jogávamos “botão”, “carteira”, assistíamos o espetáculo da enxurrada, nos dias de chuva... Depois do aguaceiro a criançada soltava barquinhos de papel no resto da correnteza que ainda teimava em escorrer pelas sarjetas.

Quando trabalhei no Banco do Brasil, em Santarém, se estava chovendo grosso, saíamos de manhã cedo, eu e papai para trabalhar, com as calças arregaçadas até o joelho, pés descalços (as famosas galochas não davam conta do dilúvio) equilibrando o guarda chuva inútil e atravessando aquela cachoeira desmedida que descia pela rua de casa, bem maior que o rio da nossa nacionalidade lá na paulicéia.

Quando criança, visitei São Paulo pela primeira vez. Meu saudoso Tio Wilmar me levou para conhecer o Rio Ipiranga em cujas “margens plácidas” foi proclamada – segundo o hino nacional – a nossa independência.
Quando lá cheguei, ele perguntou:
- Que tal, gostaste?
E eu, decepcionado:
- Cadê o rio?
E meu tio, achando graça:
- Taí na tua frente, menino...
Fiz uma cara de enjôo e falei como bom paraense:
- Égua, isso lá na nossa terra é esgoto, é vala da chuva!!!
Meu pai, meu tio e eu sempre demos risadas pelo resto da vida, relembrando o episódio.

Nas noites enluaradas da minha rua, quando o céu estrelado ficava salpicado de purpurina, os coqueiros cochichavam na brisa, parecendo gigantes descabelados, de vez em quando passava alguém abrindo a escuridão com uma lanterna e dando boa-noite...

Eu gostava de ver as pessoas sentadas na porta, tomando café, refresco, comendo beiju de tapioca e conversando, até que o boi Ginasiano passasse por ali, derrubando pessoas e cadeiras. Era um boi que de dia puxava carroça e de noite era solto pelas ruas para comer capim. Mas era cheio de pavulagem. Só andava na calçada e não respeitava ninguém. Saía dando chifradas em tudo e em todos. As calçadas eram dele, ora... quem não saísse da frente era empurrado. Ele era totalmente preto e não havia luz elétrica. Quando se percebia, já quase nem dava tempo de correr. As pessoas conversando, os casais namorando, o luar benzendo a paisagem... Aí alguém gritava: - Lá vem o Ginasiano!... Quem ainda tivesse tempo podia salvar cadeiras, banquinhos, copos etc... então a molecada aproveitava para sair gritando atrás do boi.

Ah! O pão doce gostoso, as bolachas “cabeça de macaco” da Padaria Soberana do Seu Antonico, em frente à casa do meu padrinho Miguel. Na hora da mesa brigávamos pelo “bico” do pão e então papai dizia que ia encomendar um pão-cacete de seis bicos, pra contentar todo mundo...

A escola de datilografia Pratt, da tia Ninita, minha madrinha... A escadaria que começava final da rua Siqueira Campos... A vendinha do Tota, na esquina de casa, onde, escondido da mamãe, eu jogava damas e aprendia palavrões com garimpeiros. A taberna do José Vasconcelos, que vendia linha, papel de seda e cerol para fazer e empinar papagaios, a ginjeira, o abiuzeiro, os galos de briga no quintal do Seu Leonel Neves... As brincadeiras de cowboy, montados num pau de vassoura.

O mergulhador do Trapiche que morreu e passou pela frente de casa, numa tarde de tempestade, carregado por dois catraieiros, enrolado numa rede... Quanta pena daquele indigente, que medo do enterro...

As minhas madrugadas de adolescente, sentado no batente de casa, escutando no rádio Transglobe de pilha o programa Jazz USA, pela Voz da América... Depois colocaram asfalto, todo mundo cresceu e tudo ficou sem graça. Hoje, parece que a rua encolheu e apesar dos postes de iluminação, ficou mais escura.
Quando fecho meus olhos de saudade ouço os passos do passado caminhando nas noites daquela rua. Escuto papai tocando no piano “O doce mistério da vida (sweet mistery of life)”, a valsa “Pérola do Tapajós”, o tango “La Cumparsita”... mamãe na cadeira de balanço rezando o terço... sons, perfumes, saudades do ninho que ficou vazio depois que os filhos vieram estudar e trabalhar na capital.

São onze da noite quando escrevo esta crônica. Esta hora, naquele tempo, Santarém já estava dormindo. E nós, em casa, quando escutávamos o apito da Usina do Tio Cazuza os uivos do “Retinido”, um vira-latas café com leite do Maia Catraieiro, nosso vizinho e compadre, já sabíamos que era hora de ir para a cama... ou para a rede.

Assim era a rua de casa. Nas minhas recordações eu nunca deixei de ser criança, pois, afinal de contas, como diz o poeta Quintana: “... eu quero os meus brinquedos, novamente! Sou um pobre menino, acreditai... que envelheceu um dia, de repente!...”

2 comentários:

  1. oi ze wilson, voce é otimo e fiquei feliz em relembrar tanta coisa importante em nossas vidas. espero que estejas bem de saude e com "cuca" cada vez melhor para continuares escrevendo tanta coisa boa. um abraço a damea, a ti e filhos. regina silva

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  2. Regina, grato por seu comentário. Realmente, sem saudosismos, vivemos a época de ouro de Santarém. O resto é saudade. Recordar é viver, já diz o ditado. Um abração.
    zé wilson

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